Investigação sobre sentimento de culpa
Data:13/12/2019 - Hora:08h23
Toda a escritura de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) questiona de forma obsessiva a culpabilidade e a confissão. No limite, digo que seus personagens não matam para mudar o mundo nem para melhorar sua condição de vida nem por vingança... mas só para falar do crime, nomeá-lo, confessá-lo. Na origem, Raskólnikov, do livro “Crime e Castigo” (lançado em 1866, seu sétimo livro), não tem o desejo de matar na alma nem vontade de ser justiceiro. Ele é quase um fantasma. Ingênuo, inocente, quase patético. Ele imagina seu crime como uma cena de sonho, um sonho que ele afasta e que ao mesmo tempo o obceca. Por algum tempo, ele não tem nenhuma razão intelectual para cometer o crime, passar ao ato. Aliás, no início do romance, ao pensar no assassinato da velha usurária, Raskólnikov nem sabe como nomear seu crime. Ele faz menções à “empreitada”, “ao ato”, “aquilo”.
“Crime e Castigo” propõe muito bem o problema da liberdade total. O seu herói, o estudante Raskólnikov, cujo nome se origina da seita Raskólnikovs – russos cismáticos que no século 17 não aceitaram a versão dos livros santos aprovada por um sínodo por ordem do patriarca Nikone, preferindo ser perseguidos e deportados – é, pois um cismático... Cometendo seu crime, ele se separa da comunidade humana (quer ser total para dominar o próximo). Cometido o crime, ele não poderá mais viver, se não voltar a essa comunidade, acusando-se, confessando-se, e expiando o seu ato cuja virtude – assim que foi cometido – está inteiramente perdida. E assim o romance famoso também a história de um remorso, muito mais que a de um crime.
O crime de Raskólnikov é, em última instância, paradigmático da condição humana: o que o homem é. Ainda assim, “Crime e Castigo” é um romance sobre sofrimento, culpa e a possibilidade de uma nova consciência. Um romance sobre um homem se tornando... A experiência final da verdade de Raskólnikov é o epílogo de uma epifania tornada possível pela presença de Raskólnikov nas memórias mais profundas da sua infância. O que Raskólnikov finalmente experimenta, o leitor já havia “aprendido lendo o romance.” Embora Raskólnikov desmereça em parte o romance, “Crime e Castigo” tem dinâmica bastante para reabilitá-lo e se manter como uma das obras capitais de Dostoiévski e, precisamente, por revitalizar-se e fazer-se na derrota da personagem. Pois, afinal, um texto não é representado pela sua personagem mais importante, ou mesmo pela problemática que ela carrega. Um livro impõe-se por seu conjunto, e só nele pode ser visto, as partes e os planos que o constituem contribuindo todos na direção preestabelecida da ideia geral, motivando-se e interagindo, criando e fazendo surgir, no fim, a pretendida resultante do trabalho do artista. ***___ Rubens Shirassu Júnior, autor, entre outros, de Religar às Origens (ensaios e artigos, 2011) e Sombras da Teia (contos, 2017)
fonte: Rubens Shirassu Júnior
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