A perigosa utopia
Data:04/06/2019 - Hora:08h31
Mudou muito o Brasil, e com isso os fantasmas do sótão não se conformam. Lembro-me das meninas assustadas, com sua pobre chita de domingo, chegando à rodoviária trazidas da miséria da roça para os quartos de empregada, onde dividiam espaço com os trastes da família, comiam o que sobrava das refeições dos amos e eram sempre vigiadas por madames ciumentas. A faxineira semanal aqui de casa completa este ano o segundo grau e a formação como auxiliar de enfermagem na escola pública. A pequena empresária que a contrata, e também faz faxina para nós de vez em quando, graduou-se em administração com especialização em gestão de pessoas. Dei-lhe, porque quis ler, livros meus, sobre jornalismo. Orgulho-me de ter participado dessa mudança de parâmetros e me desespera vê-la ameaçada.
A conquista da excelência nacional em educação demora, em geral, muito tempo, e o Brasil começou tarde. Porque não havia culturas sofisticadas e estados nacionais a destruir, como os impérios Inca, Maia e Asteca, os europeus não fundaram, aqui, universidades. Por dois séculos e meio, o ensino conduzido pelos jesuítas criou uma língua geral, o tupi-guarani, e ensaiou modelo civilizatório próprio, cuja vitrina foram as missões dos Sete Povos. Expulsos os padres pelas decadentes coroas ibéricas, em meados do Século XVIII, restou vazio lentamente preenchido, no Vice-reinado e no Império pelas primeiras iniciativas de ensino público e escolas pioneiras de Engenharia, Direito e Medicina. A Velha República, ao fortalecer as oligarquias e promover o racismo, consagrou o princípio de que a educação popular é presente “do governo ao povo”, como está, ou esteve, gravado na fachada do prédio de uma escola de ensino básico, no Largo do Machado, Rio de Janeiro,inaugurada nos anos 1920 — dádiva, não conquista.
As primeiras universidades no Brasil foram fundadas com motivação episódica: a Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1920, para outorgar título de doutor honoris causa a monarca visitante, porque “caía bem”; a Universidade de São Paulo, USP, com o propósito de combater as ideias “subversivas” do desenvolvimentismo e do trabalhismo que orientavam o governo de Getúlio Vargas. Ambas se consolidaram nos anos 30 e 40, com o aporte de sábios estrangeiros. Uma boa política de educação deve ser universal, abranger e tentar integrar as áreas de conhecimento e desenvolver-se simultaneamente em todos os níveis, aberta a gente de todas classes sociais. Trata-se de investimento gigantesco, no prazo curto de que dispusemos e dispomos,, cujos efeitos são a abertura dos horizontes individuais e a imposição da racionalidade sobre valores atávicos. Isso é bom do ponto de vistas das pessoas, mas contribui, principalmente, para viabilizar formas democráticas e eficientes de gestão nos planos político e econômico. Após experiência no meio acadêmico que começou na década de 1950, quando iniciei meu curso, inacabado, de Medicina, e não se interrompeu desde então, em áreas diversas, tenho clara noção de como é sofrida a criação de quadros docentes de alto nível e a maturação dos núcleos de pesquisa; mas também como isso desborda para o ensino básico e como se reflete virtuosamente. em penosos embates, no ambiente cultural do país.
No Brasil, a expansão da rede pública de excelência, que se acelerou ultimamente, vem sendo espremida por universal onda retrógrada que soma ganância dos ricos e remediados, frustração dos incompetentes e desespero dos fundamentalistas de pensamento mágico.
O móvel dessa maré, para quem atenta ao avanço das tecnologias e seus efeitos, é o temor de um futuro de sociedades solidárias, povoadas por gente esclarecida e liberta da escravidão, servidão ou proletaridade, formas históricas de expressão brutal da luta de classes.
Quem atiçou as feras estúpidas que cercam as escolas acredita, mesmo, que nelas se equaciona a fórmula de comunidades distensas, sustentadas pelo trabalho de máquinas inteligentes que não rendem mais valia. Caberá aos humanos, então, poupar matérias primas e esforços hoje esbanjados; otimizar as condições de sobrevivência da espécie e o refinamento das culturas. Combatem, por antecipação, a utopia, para eles, assustadora. ***___Nilson Laghe, é jornalista.
fonte: Nilson Laghe
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